Crime Militar e o ANPP: Militar de serviço dispara o seu fuzil em via pública.

É POSSÍVEL A APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL – ANPP – NESTE CASO?

1 A INSTRUÇÃO DE TIRO DE FUZIL E O DISPARO DE ARMA DE FOGO EM VIA PÚBLICA

O fuzil é uma arma de fogo portátil, de cano longo, utilizada em combates militares ou em ações policiais.

Como o fuzil é uma arma individual de uso comum para os militares e policiais, logo que ingressam nas unidades – serviço militar obrigatório/concurso/processo seletivo – esses agentes recebem instrução técnica para poder manuseá-lo adequadamente.

A instrução de tiro é uma atividade importantíssima para o desenvolvimento de vários atributos, que vão além da aprendizagem do exercício prático do tiro. Visa desenvolver comportamentos relacionados à disciplina, à coragem, ao equilíbrio emocional, à segurança e à capacidade psicomotora que acompanharão o jovem por toda a sua vida.

A segurança é sempre intensificada, em especial nas atividades relacionadas ao manuseio de armas de fogo e de explosivos.

Imaginemos a situação hipotética do Cabo Azuil, lotado na 1ª Companhia de Fuzileiros do 84º Batalhão, que estava de serviço como Cabo da Guarda do Quartel, no feriado da Sexta-Feira Santa. Para quem não sabe, o serviço de escala dos militares dura 24 horas.

O Cabo Azuil estava conduzindo as sentinelas para fazer a troca do posto que ficava na frente do Batalhão. Quando chegou ao local, determinou aos soldados que fizessem a passagem do serviço, inclusive realizando os procedimentos de segurança relacionados ao armamento.

Durante o manuseio do fuzil, o Cabo Azuil observou que o Soldado Alfeu, recruta incorporado em março daquele ano, estava inseguro e nervoso em manusear a sua arma.

O cabo Azuil, rispidamente, tomou o fuzil das mãos do soldado Alfeu.

Quando foi realizar os procedimentos de segurança, acionou o gatilho, disparando o fuzil que, por sua vez, o projétil atingiu um veículo estacionado do outro lado da via pública.

Felizmente, não houve vítimas.

2 A LAVRATURA DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO EM DESFAVOR DO CABO AZUIL

Em decorrência do disparo acidental, foi imediatamente acionado o plano de defesa do aquartelamento, sendo mobilizado todos os militares de serviço para tomarem posição em postos estratégicos da organização militar.

O Comandante e o Subcomandante da organização militar são acionados nesses casos.

Como houve danos a bem privado – veículo –, o Oficial-de-Dia chamou a perícia da Polícia Civil para acessar o automóvel, identificar o seu proprietário e registrar em laudo pericial os danos ocorridos.

O Cabo Azuil foi conduzido até a presença do Oficial-de-Dia que, no mesmo instante, lhe deu voz de prisão e iniciou os procedimentos para a lavratura do auto de prisão, pois o militar supostamente incorreu nas sanções do crime previsto no artigo 15 da Lei nº 10.826/2003, in verbis:

…………………………………………………….

Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

…………………………………………………….

Caracterizou-se esse fato como como crime militar por extensão, pois o artigo 9º, inciso II, alínea “a”, do Código Penal Militar assevera:

…………………………………………………….

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

(…)

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:   (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

…………………………………………………….

No caso, a legislação penal extravagante é o Estatuto do Desarmamento, Lei nº 10.826/2003, que estabeleceu a aplicação de sanção penal à pessoa que dispara arma de fogo em via pública.

Para assegurar os direitos do Cabo Azuil, o Presidente do Flagrante, lavrou a Nota de Ciência das Garantias Constitucionais, onde constou as seguintes assertivas: 1) o respeito à sua integridade física e moral; 2) o direito de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; 3) a comunicação de sua prisão a um membro de sua família; e 4) a identificação dos responsáveis por seu interrogatório policial.

O Cabo Azuil ligou para o seu advogado e para o seu irmão que compareceram imediatamente na sede do Batalhão.

Em seu interrogatório, na presença de seu advogado, confessou que pressionou o gatilho, mas achava que o fuzil não estava carregado.

Após a conclusão do auto de prisão, o cabo Azuil foi conduzido até o Instituto Médico Legal, para que fosse realizado o exame de corpo de delito.

Quando retornou, foi imediatamente recolhido ao xadrez.

3 A COMUNICAÇÃO DA PRISÃO E A ANÁLISE DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR SOBRE O DISPARO DO FUZIL EM VIA PÚBLICA

Em menos de 24 horas, o Presidente do Flagrante expediu ofício para o Juízo Militar competente para julgar o crime, comunicando a realização da prisão em flagrante do Cabo Azuil.

Após a juntada de todas as diligências, incluída as perícias realizadas na arma e no veículo que foi danificado, os autos da prisão em flagrante foram protocolizados na Auditoria Militar.

O Juiz recebeu os autos e abriu vista ao Ministério Público Militar.

A Promotora de Justiça Militar, a quem o procedimento foi distribuído, passou a estudar detidamente o caso, verificando se estariam presentes todas as elementares do crime, tais como: 1) “disparar arma de fogo”; 2) “em lugar habitado ou em suas adjacências”; 3) “em via pública”; e 4) “que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime”.

Presentes os requisitos do crime, a diligente Promotora passou a verificar as condições do militar que praticou a conduta, observando que o Cabo Azuil é militar da ativa, estando em plenas faculdades mentais, portanto, imputável.

Destacou que o crime também não ocorreu em “estado de necessidade”, “em legítima defesa”, “em estrito cumprimento do dever legal” ou “em exercício regular de direito”, situações capazes de afastar essa imputação.

O contexto fático-jurídico submetido ao conhecimento da justiça criminal estava completo.

Em outras palavras, o Ministério Público Militar estava pronto para oferecer a Denúncia e o Cabo Azuil passar a condição de sub judice.

4 É POSSÍVEL A APLICAÇÃO DO ANPP PARA O CABO AZUIL NESTE CASO? COMO OCORRERIA NO CRIME MILITAR EM TELA?

Bem, antes de responder a essas questões, devemos entender o que significa o Acordo de Não Persecução Penal – ANPP.

O ANPP é uma forma de composição que extinguirá a punibilidade do Cabo Azuil – no caso de 2 a 4 anos de reclusão – se forem cumpridas as condições pactuadas.

Esse acordo de não persecução penal está previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal comum, trazido pela Lei nº 13.964/2019, que inseriu no ordenamento jurídico o chamado de “Pacote Anticrime”.

…………………………………………………….

  Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (grifei)

…………………………………………………….

Ora, a aplicação do ANPP é uma ótima alternativa aos acusados.

No caso do Cabo Azuil é uma situação muito menos gravosa, pois se houver a proposta e a aceitação do acordo, afastará aplicação de pena decorrente de uma sentença condenatória.

Importante frisar que o artigo 28-A do CPP estabelece várias condições que, se forem aceitas, o ANPP poderá ser proposto. Dentre as condições legais, há a necessidade de o Cabo Azuil, de forma espontânea, confessar a prática do crime.

A confissão é requisito essencial para o prosseguimento das demais circunstâncias do ANPP.

As afirmações trazidas nos parágrafos anteriores são arquétipos para a aplicação geral do ANPP.

No que tange aos crimes militares, vale a pena citar as inovações trazidas pelo 9º Encontro do Colégio de Procuradores do Ministério Público Militar, ocorrido em Brasília-DF, no período de 24 a 26 de novembro de 2021, quando foram aprovados vários enunciados, dentre os quais se destacam os seguintes:

…………………………………………………….

Enunciado 4: O Ministério Público Militar pode formalizar Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), com base no art. 3°, alínea “a”, do CPPM, c/c art. 28-A do CPP, tanto para civis, quanto para militares, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime militar.

Enunciado 5: Na celebração do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), deve o membro do MPM fixar o prazo do cumprimento do acordo em tempo inferior ao da prescrição da pretensão punitiva em abstrato, aplicável ao caso concreto

……………………………………………………..

Nessa linha, o Ministério Público Militar consolida o entendimento já adotado e aplicado em outros órgãos do MP da União e do Estados, especificamente no que tange aos crimes militares.

Assim, é plenamente possível a aplicação do ANPP aos crimes militares.

No caso do Cabo Azuil, será necessário constituir um advogado para acompanhá-lo nas audiências junto à Promotora do Ministério Público Militar para delinear os termos do acordo e a sua confissão.

Após essas tratativas iniciais, o ANPP será proposto pela Promotora de Justiça Militar ao Juízo Castrense para ser homologado em audiência designada para esse fim.

Essas são as linhas gerais adotadas atualmente para a realização do ANPP no âmbito da Justiça Militar.

5 CONCLUSÃO

Do exposto, entende-se que o ANPP é um direito que o acusado pode exercer para não se ver processado criminalmente.

Essa afirmação pode ser extraída do § 14 do artigo 28-A do CPP, quando estabelece o caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o ANPP, o investigado pode requerer a remessa dos autos ao órgão superior para apreciar o seu pedido.

A situação se reflete em todos os militares das Forças Armadas e dos Estados e do Distrito Federal – Polícia Militar e Corpo de Bombeiros – que, mutatis mutandis, também podem requerer a aplicação do ANPP.

Em conversa com juízes federais da Justiça Militar da União, foi relatado que os advogados silenciam sobre a possibilidade de aplicação de ANPP em determinados casos de seus clientes. Por essa razão, há a necessidade de contratar um advogado de sua confiança para cuidar de seus interesses.

Em suma, vale a pena sempre analisar a possibilidade de aplicação de ANPP, pois isso poderá minimizar o sofrimento do cliente, ante os enormes transtornos a ocorrer em sua vida pessoal e profissional pelo fato de responder a um processo criminal, com a possibilidade de acabar condenado a uma pena elevada.

6 REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 4.1.2022.

________. Lei nº 5.020, de 7.6.1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5020impressao.htm>. Acesso em 4.1.2022.

________. Decreto-Lei nº 1.001, de 21.10.1969. Código Penal Militar. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm>. Acesso em 4.1.2022.

________. Decreto-Lei nº 1.002, de 21.10.1969. Código de Processo Penal Militar. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm>. Acesso em 4.1.2022.

________. Presidência da República. Decreto nº 4.034, de 26.11.2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D4034.htm>. Acesso em 4.1.2022.

________. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Secretaria-Geral do Exército. Boletim do Exército. Disponível em: <http://www.sgex.eb.mil.br/sistemas/boletim_do_exercito/boletim_be.php>. Acesso em 4.1.2022.

________. Ministério Público Militar. Carta do 9º Encontro do Colégio de Procuradores de Justiça Militar – 9ECPJM. Disponível em: <https://www.mpm.mp.br/portal/wp-content/uploads/2022/01/carta-9ecpjm-1.pdf>. Acesso em 26.2.2022.

SOUSA, Jhonatan Marcel Alves de. Possibilidade de aplicação do acordo de não persecução aos crimes militares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6547, 4 jun. 2021.Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/90820>. Acesso em 20.2.2022.

Deixe um comentário