Introdução
A curiosidade, por vezes, é uma força incontrolável. Ela nos impulsiona a explorar, a descobrir, a ir além dos limites do conhecido. Mas e quando essa curiosidade nos leva a cruzar uma linha, uma fronteira que, embora não pareça, é protegida por uma lei rigorosa e uma vigilância constante?
Essa é a história de CHIVUNK, um cidadão russo, cuja paixão pela vida selvagem o colocou em uma situação que ele jamais imaginaria. Uma aventura impulsiva que o levou não a um encontro com a natureza exuberante da Amazônia, mas sim com a severidade da Justiça Militar. E, mais do que isso, a história de CHIVUNK – nome fictício – é real e nos serve como um portal para entender um dos debates jurídicos mais relevantes do Brasil: a competência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz, um tema central da ADPF 289 no Supremo Tribunal Federal.
Nesse artigo, vamos discorrer um pouco sobre as razões para a manutenção desse braço especializado do Poder Judiciário brasileiro, tão importante quanto a sua natureza e expertise.
O Chamado da Selva Urbana: A Aventura de CHIVUNK em Manaus
Era uma tarde quente e úmida em Manaus, como tantas outras. CHIVUNK, passeava a pé, com seu amigo chileno que o conheceu em viagem de barco regional pelo rio Solimões, pela Avenida Coronel Jorge Teixeira, nas proximidades do famoso Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS).
Conhecido por ser um dos mais respeitados centros de treinamento militar do mundo, o CIGS também abriga um zoológico peculiar, com espécies da fauna amazônica, muitas delas resgatadas ou em recuperação.
A ideia de visitar o zoológico do CIGS sempre o fascinou. No entanto, o acesso ao público é restrito e sujeito a horários e regras específicas. Naquele dia, a impaciência e uma dose de audácia tomaram conta de CHIVUNK. Ele avistou um trecho do muro que parecia mais baixo, mais convidativo. Uma ideia imprudente, mas irresistível, começou a germinar em sua mente: “E se eu pulasse o muro? Seria rápido, ninguém veria, e eu finalmente veria de perto os animais da selva. Será que a guarda está atenta?”
A adrenalina subiu. Sem pensar nas consequências, CHIVUNK olhou para os lados e, em um impulso, escalou o muro. Em poucos segundos, estava do outro lado, pisando em solo que, embora parecesse apenas um pedaço de terra com árvores, era, na verdade, uma área militar de segurança máxima.
O Encontro Inesperado: A Guarda do Quartel Atenta, o Ingresso Clandestino e o Crime Militar
CHIVUNK mal havia dado alguns passos, com os olhos fixos na direção que ele imaginava ser a do zoológico, quando uma voz firme e autoritária o fez parar.
“Parado! Identifique-se!”
A surpresa foi total. A guarda do quartel, treinada para a vigilância constante e a proteção do perímetro, estava atenta. Em questão de instantes, CHIVUNK se viu cercado. Não houve tempo para explicações, para desculpas ou para tentar reverter a situação. Ele havia sido pego em flagrante.
Naquele momento, não flava mais português, inglês ou espanhol, apenas a sua língua nativa o “russo”.
O que para CHIVUNK era uma simples “invasão” para ver animais, para os militares era um ato grave: ingresso clandestino em área militar. Um ato que, conforme a lei, não é apenas uma infração administrativa, mas um crime militar.
A partir daquele momento, a vida de CHIVUNK tomou um rumo inesperado. Ele foi detido, e o caso, que poderia parecer trivial para um leigo, rapidamente escalou para a esfera da Justiça Militar da União (JMU). E é aqui que a história de CHIVUNK se entrelaça com um debate jurídico complexo e de grande relevância: a competência da Justiça Militar para julgar civis.
Muitos se perguntam: um civil pode ser julgado por um tribunal militar? A resposta, embora não seja um simples “sim” ou “não”, é que, em certas circunstâncias, sim. O Código Penal Militar (CPM) e o Código de Processo Penal Militar (CPPM) preveem situações em que civis podem ser enquadrados como sujeitos ativos de crimes militares.
A ADPF 289: Um Marco na Discussão sobre a Competência da JMU para Julgar Civis
O caso de CHIVUNK é real, espelha as situações reais que levaram a discussões profundas no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a submissão de civis à Justiça Militar da União. Tal situação ensejou na interposição de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 289, em trâmite no STF, a qual aborda justamente a questão da competência da Justiça Militar para julgar civis.
Em resumo, a ADPF 289 foi protocolizada em 2013 pelo Procurador-Geral da República (PGR). A preocupação inicial era que a submissão de civis a processo e julgamento pela Justiça Militar, em tempo de paz, vulnerava os princípios do Estado Democrático de Direito. A argumentação do PGR, à época, questionava como um civil, em tempo de paz, seria capaz de atentar contra a hierarquia e a disciplina da tropa, que são a base institucional das Forças Armadas e que submetem os militares a um regime jurídico constitucional especial.
A caracterização de um delito militar, de forma excepcional, pressupõe ofensa a elementos muito específicos, como a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais, ou a garantia da lei e da ordem por iniciativa das Forças Armadas, conforme o Art. 142 da Constituição Federal.
O caso concreto trazido como contextualização nesse artigo demonstra exatamente o contrário do que alegado pelo PGR, mesmo em tempo de paz, o civil – cidadão russo – foi capaz de atentar contra as regras castrenses, as quais vão além da hierarquia e da disciplina da tropa.
A segurança de seu pessoal, de suas instalações onde se acondicionam material bélico altamente sensível – armamento, munições, viaturas blindadas etc. –, seja pela proteção e segurança da própria sociedade, que são tão caras e imprescindíveis às Forças Armadas e ao seu regime jurídico constitucional especial, os quais não podem ser invadidas por qualquer pessoa – civil ou militar.
A Justiça Militar no Brasil: Entendendo as Esferas de Atuação
Para compreender a complexidade do caso de CHIVUNK e da ADPF 289, é fundamental entender a estrutura da Justiça Militar no Brasil.
A JUSTIÇA MILITAR NO BRASIL se divide em duas espécies:
- A Justiça Militar da União (JMU): Prevista nos artigos 122 a 124 da Constituição Federal, possui jurisdição sobre as Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica). É importante notar que apenas a JMU possui competência para julgar os crimes militares praticados por militares das Forças Armadas e por civis.
ii) A Justiça Militar dos Estados e do Distrito Federal (JME): Prevista no artigo 125, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal, possui jurisdição sobre a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar de cada estado. A JME não julga civis.
Essa distinção é crucial. O caso de Carlos, por envolver uma área do Exército (CIGS), recai diretamente sob a competência da JMU.
A Atual Forma de Julgamento de Civis na JMU: Uma Evolução Legislativa
A forma como civis são julgados na JMU passou por mudanças significativas, especialmente após o ajuizamento da ADPF 289.
A atual forma de julgamento de civis na JMU esclarece essa evolução. Após o advento da Lei nº 13.774/2018, os crimes militares praticados por civis passaram a ser julgados de uma nova maneira.
Antes, esses casos eram julgados pelo Conselho de Justiça, uma formação mista composta por 1 Juiz Federal togado e 4 Juízes Militares (Oficiais).
No entanto, com a nova lei, o julgamento de civis na JMU passou a ser realizado pelo Juiz Federal da Justiça Militar, de forma monocrática. Isso significa que a decisão é tomada por um único juiz, e não por um colegiado com a participação de militares.
Essa mudança legislativa teve um impacto direto na posição do Procurador-Geral da República em relação à ADPF 289. Diante da evolução da legislação castrense, o atual PGR manifestou-se pela improcedência da ADPF 289. A justificativa para essa mudança de postura é justamente o fato de que, a partir de 2018, os civis passaram a ser processados e julgados por um Juiz Federal da Justiça Militar, de forma monocrática, afastando-se a composição mista do Conselho de Justiça.
Portanto, em Manifestação endereçada ao STF, lavrada em 10.6.2020, o PGR pugnou pela manutenção, em caráter excepcional, da competência da JMU para o julgamento de civis por crimes militares em tempo de paz. Essa manifestação reflete um entendimento de que a nova sistemática de julgamento, com um juiz togado decidindo monocraticamente, mitiga as preocupações iniciais sobre a violação dos princípios do Estado Democrático de Direito.
O Artigo 302 do Código Penal Militar: A Base Legal para o Caso de Carlos
O crime de ingresso clandestino, como o cometido por CHIVUNK, está tipificado no Artigo 302 do Código Penal Militar (CPM), que estabelece:
Art. 302. Penetrar em fortaleza, quartel, estabelecimento militar, navio, aeronave, arsenal ou em qualquer outro lugar sujeito à administração militar, ou em suas dependências, sem permissão da autoridade competente, ou transpor, sem a mesma permissão, para o interior de qualquer desses lugares, a cerca, muro ou qualquer obstáculo que os circunda:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Este artigo é a base legal para a acusação contra CHIVUNK. Ele não apenas entrou em uma área militar sem permissão, mas o fez de forma clandestina, transpondo um obstáculo (o muro).
A pena, embora de detenção, pode ter implicações significativas na vida de um civil, incluindo antecedentes criminais, e, como vimos, o julgamento ocorreria na JMU, sob a nova sistemática monocrática.
Enfim, o cidadão russo CHIVUNK foi condenado pela JMU, não adiantou a sua estratégia de dizer que não falava português, inglês ou espanhol, o Consulado nomeou um tradutor, ela cumpriu a pena na antiga 12ª Companhia de Polícia do Exército.
Conclusão
CHIVUNK foi “testar” a guarda do CIGS, foi preso em flagrante e acabou condenado pela JMU. Esse fato rela é um lembrete vívido de que a curiosidade, embora um motor para a descoberta, deve sempre ser temperada com o respeito às leis e aos limites estabelecidos.
A linha tênue entre a aventura pessoal e a infração legal pode ser mais fina do que se imagina, especialmente quando se trata de áreas de segurança nacional. A JMU desempenha um papel crucial ao tutelar os princípios basilares que mantém a ordem, a disciplina, a hierarquia e a segurança das Forças Armadas e, por extensão, da sociedade.
A evolução legislativa e a postura do STF na ADPF 289, ainda pendente de julgamento, vão reforçar a importância desse sistema jurídico especializado que, mesmo em tempo de paz, é capaz de proteger os pilares da defesa nacional, garantindo que atos como o do cidadão russo sejam devidamente enquadrados e julgados.